A sombra

Ele chega em casa, acende a luz e olha ao redor. Tudo tão vazio quanto seu peito. Não há ninguém para recebê-lo na volta do trabalho. Na verdade, nunca houve ninguém que o esperasse. Todos que se aproximavam dele o faziam sofrer. Das mais diversas formas. O exploravam, enganavam-no, usavam-no, humilhavam-no, abandonavam-no, o jogavam fora como se fosse um objeto descartável. Nunca foi respeitado, admirado, amado. Um dia, ele cansou de esperar que a vida lhe sorrisse e entregou-se à solidão. Daí por diante, vivia a ruminar sua infelicidade. Joga-se em uma cadeira e afrouxa o nó da gravata. “É! Mais um dia que passa!” ele diz a si mesmo passando os dedos entre os cabelos. Abaixa a cabeça e enquanto reflete sobre a vida - se é que podia chamar aquilo de vida -, ele detem seu olhar no desenho escuro formado sob seus pés.

Aquela mancha preta que lhe copiava a silhueta de repente lhe chama a atenção. Lá está sua sombra, sempre a lhe plagiar os movimentos, retribuir os gestos. Presa a seus pés, seguindo-lhe os passos. Negra. Vazia. Volta e meia, pisoteada. Tratada com insignificância, assim como ele. Mas o que era de fato uma sombra? De onde viera? Amiga ou inimiga? Uma hora maior que nós. Outra menor, mais fina, quase frágil. Às vezes múltipla. E com a capacidade de se esconder, unindo-se a outras sombras. As mais variadas, de todo tipo, formas e tamanhos. Quem sustenta quem? Quem está preso a quem? Então o solitário tem a certeza de que a única companhia que teve durante a vida inteira, fora sua própria sombra, embora, obviamente, jamais tenha interagido com ela. Porém, não pode se alegrar com isso, afinal, talvez sua sombra estivesse ali não por vontade própria. Talvez ela achasse melhor ser a sombra de alguém importante e não de um zero-à-esquerda que nunca se deu bem na vida. Tal pensamento o faz rir. “O que estou pensando? Uma sombra lá tem vontade? Eu já devo estar ficando louco!”. Balança a cabeça como se quisesse afugentar as idéias absurdas que lhe enchem a mente. De qualquer forma, esta é a primeira vez que se volta para aquela que nunca se afastou dele e nunca lhe causou nenhum tipo de mal.

Como que grato pela companhia silenciosa, acena para a própria sombra, tendo imediatamente a retribuição do gesto. Em seguida começa a imaginar como deveria ser ruim estar preso a alguém, sempre lhe repetindo os movimentos. Mira sua sombra sem que esta lhe devolva o olhar, mas sabe que ambos estão se encarando. Será que ela o entende? De repente o solitário sobressalta-se. Vê sua sombra movimentar-se sem que ele próprio se mova. Pisca os olhos acreditando que a visão o enganava por conta do cansaço. Qual foi seu susto ao perceber que sua sombra não está mais sentada como ele, mas em pé, em sua frente. O pavor toma conta do solitário que olha aquilo com o grito preso na garganta. Ela não tem feições, é apenas um desenho negro dele. A sombra o segura pelos ombros e numa voz medonha, diz: “Há muito tempo que eu não sou a única sombra aqui”. E sem que o homem possa esboçar qualquer tipo de reação, é devorado por seu desenho escuro, sem ter tempo de entender que há anos ele alimentava a grande sombra que lhe toma a alma.
* Esse texto foi escrito para O Clube do Conto. Tema escolhido: Sombra

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